De volta à geografia

13 de outubro de 2023

Milhares de anos atrás, terras férteis, água e outros recursos naturais determinaram a mais profunda transformação da humanidade ao oferecerem condições para assentamentos e para o desenvolvimento da agricultura. Muita água passaria por debaixo da ponte e, há cerca de 300 anos atrás, iniciaria outra profunda transformação, esta, ancorada no conhecimento, tecnologia, inovação, organização da produção e instituições. De maneira simplificada, fomos da Revolução Neolítica à Revolução Industrial e, mais recentemente, à Revolução Digital. Com isto, a influência econômica da geografia iria, pouco a pouco, ceder espaço para ideias, soluções engenhosas e eficiência.

Este resumidíssimo arcabouço nos ajuda a entender por que países com relativamente poucos recursos naturais puderam se enriquecer, enquanto outros, ricos em recursos, seguiriam pobres. O elevado desenvolvimento e fluidez dos mercados globais de commodities têm garantido uma ordem que, ao fim e ao cabo, permite que países com recursos naturais escassos possam aceder, sem maiores inconvenientes, aos alimentos, energias e minerais de que necessitam.

Mas esta ordem poderá estar chegando ao fim. Séculos de extrativismo predatório têm alterado a geografia ao destruir florestas, dilapidar recursos hídricos, contaminar solos, degradar terras, poluir o ar e a água, promover gigantescas emissões de gases de efeito estufa e contribuir para o aquecimento do planeta. Tudo isto está levando ao aumento da incidência de eventos climáticos cada vez mais extremos e trazendo perturbações, imprevisibilidade e incertezas aos mercados. O aumento da volatilidade e dos riscos subjacentes àquelas alterações já estão afetando os valores de ativos, a viabilidade econômica e financeira de projetos e afetando até o mercado de seguros.

De outro lado, testemunhamos um acelerado processo de desglobalização causada por fatores políticos, com movimentos autárquicos de discriminação, protecionismo, controle de capitais e de investimentos e espetaculares pacotes de subsídios e intervenções que adicionam aos desafios do funcionamento dos mercados. Essas estratégias de autossuficiência econômica parecem partir do pressuposto de que os mercados de recursos naturais seguirão funcionando normalmente, como se fossem uma arena apartada dos demais mercados, o que pode ser uma avaliação equivocada.

Ao que tudo indica, o aquecimento do planeta seguirá aumentando e, a esta altura, é difícil acreditar que sejamos capazes de contê-lo dentro dos limites de segurança. A euforia de anos recentes com compromissos e metas ambientais está perdendo fôlego. De fato, a larga predominância de interesses comerciais por em cima de interesses do planeta, a escassez de fundos para financiar a descarbonização, a procrastinação de medidas normativas necessárias para garantir o cumprimento de compromissos e metas ambientais, o ainda crescente consumo de petróleo e a revogação de compromissos de fundos de investimento privado e de grandes empresas com princípios ESG indicam ações fragmentadas e descoordenadas ao velho estilo do comportamento free-rider e sinalizam que estamos bastante distantes da agenda de interesse comum.

Em razão dessas grandes mudanças, é provável que a geografia volte ao centro da agenda econômica, o que terá importantes e profundas implicações sociais, políticas e até geopolíticas. Afinal, não se produz água, alimentos e nem minerais em laboratório e tudo aquilo que depende demasiado de recursos naturais experimentará significativo aumento de preços relativos ao longo dos próximos anos e décadas.

Com condições geográficas únicas, a região da América Latina e Caribe (ALC) tem enormes vantagens comparativas e competitivas escaláveis associadas a recursos naturais que muito podem contribuir para as agendas globais. A região tem vastas áreas para expansão da produção agrícola e goza de grandes recursos hídricos, o que a habilita a aumentar a produção de alimentos para a mesa do mundo. Além disto, a região tem vários países com matrizes elétricas já verdes ou bastante verdes, o que a habilita, como nenhuma outra, ao powershoring, ou a receber plantas e cadeias industriais intensivas em energia e que necessitam descarbonizar as suas operações. Esta estratégia, de um lado, acelera os tempos da descarbonização em nível global e, de outro, reduz os seus custos, ao tempo em que permite aumentar rapidamente a oferta de bens manufaturados verdes.

A ALC também dispõe de grandes reservas de muitos dos mais importantes minerais necessários para a transição climática, ali incluídos o lítio, cobre, cobalto, níquel, nióbio, terras raras, grafite e minério de ferro de alto teor, o que também a habilita a desenvolver cadeias de valor industriais para a sustentabilidade. As ricas florestas e biomas da região, a inigualável biodiversidade e a bioeconomia também levam a que a região possa contribuir de maneira fundamental para a descarbonização e o equilíbrio do clima e para o fornecimento de soluções biológicas sofisticadas para problemas novos e antigos. E a região também lidera muitas das mais modernas soluções de biocombustíveis. Tudo isto sugere que a luta contra a descarbonização passará, necessariamente, pela ALC.

Mas, para que a região possa servir ao planeta, será necessário que os mercados e o sistema de preços funcionem. As crescentes barreiras e medidas de proteção, tarifárias e não tarifárias, em especial para a indústria, nada contribuem num contexto em que, mais do que nunca, será necessário o uso mais eficiente e racional dos recursos naturais de forma a reduzir os custos da transição e os impactos da mudança do clima. Isto será especialmente importante para os grupos mais vulneráveis.

Neste sentido, será preciso eliminar perturbações artificiais à geografia e às vantagens comparativas e competitivas e rever obstáculos que distorcem preços e a alocação dos recursos em favor de projetos industriais e não industriais e de energia mais eficientes e benéficos para todos. Esta agenda oferece gigantescas oportunidades de negócios que combinam rentabilidade, desafios do clima e ODS.

A ALC tem razões de sobra para dobrar a aposta em políticas e investimentos da sustentabilidade, converter-se em referência da transição verde e justa e ser importante provedor de soluções de interesse de todos.

Autores:
Jorge Arbache
Jorge Arbache

Vicepresidente de Sector Privado, CAF -banco de desarrollo de América Latina y el Caribe-